• Uncategorized

    Gotas de Poesia


    Fernando Pessoa – 25 Poemas (dele e dos heterônimos)

    Tabacaria

    Não sou nada.
    Nunca serei nada.
    Não posso querer ser nada.
    À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

    Janelas do meu quarto,
    Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
    (E se soubessem quem é, o que saberiam?),
    Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
    Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
    Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
    Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
    Com a morte a por umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
    Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.

    Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
    Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
    E não tivesse mais irmandade com as coisas
    Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
    A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
    De dentro da minha cabeça,
    E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

    Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
    Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
    À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
    E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

    Falhei em tudo.
    Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
    A aprendizagem que me deram,
    Desci dela pela janela das traseiras da casa.
    Fui até ao campo com grandes propósitos.
    Mas lá encontrei só ervas e árvores,
    E quando havia gente era igual à outra.
    Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?

    Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
    Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
    E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
    Gênio? Neste momento
    Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu,
    E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
    Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
    Não, não creio em mim.
    Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!
    Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
    Não, nem em mim…
    Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
    Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando?
    Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas –
    Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
    E quem sabe se realizáveis,
    Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
    O mundo é para quem nasce para o conquistar
    E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
    Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
    Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
    Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
    Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
    Ainda que não more nela;
    Serei sempre o que não nasceu para isso;
    Serei sempre só o que tinha qualidades;
    Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
    E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
    E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
    Crer em mim? Não, nem em nada.
    Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
    O seu sol, a sua chava, o vento que me acha o cabelo,
    E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
    Escravos cardíacos das estrelas,
    Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
    Mas acordamos e ele é opaco,
    Levantamo-nos e ele é alheio,
    Saímos de casa e ele é a terra inteira,
    Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido

    (Come chocolates, pequena;
    Come chocolates!
    Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
    Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
    Come, pequena suja, come!
    Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
    Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
    Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)

    Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
    A caligrafia rápida destes versos,
    Pórtico partido para o Impossível.
    Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
    Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
    A roupa suja que sou, sem rol, pra o decurso das coisas,
    E fico em casa sem camisa.

    (Tu que consolas, que não existes e por isso consolas,
    Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
    Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
    Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
    Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
    Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
    Ou não sei quê moderno – não concebo bem o quê –
    Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
    Meu coração é um balde despejado.
    Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
    A mim mesmo e não encontro nada.
    Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
    Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
    Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
    Vejo os cães que também existem,
    E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
    E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)

    Vivi, estudei, amei e até cri,
    E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
    Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
    E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
    (Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
    Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
    E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente

    Fiz de mim o que não soube
    E o que podia fazer de mim não o fiz.
    O dominó que vesti era errado.
    Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
    Quando quis tirar a máscara,
    Estava pegada à cara.
    Quando a tirei e me vi ao espelho,
    Já tinha envelhecido.
    Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
    Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
    Como um cão tolerado pela gerência
    Por ser inofensivo
    E vou escrever esta história para provar que sou sublime.

    Essência musical dos meus versos inúteis,
    Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,
    E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
    Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
    Como um tapete em que um bêbado tropeça
    Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.

    Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
    Olho-o com o desconforto da cabeça mal voltada
    E com o desconforto da alma mal-entendendo.
    Ele morrerá e eu morrerei.
    Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
    A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também.
    Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
    E a língua em que foram escritos os versos.
    Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
    Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
    Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,

    Sempre uma coisa defronte da outra,
    Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
    Sempre o impossível tão estúpido como o real,
    Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
    Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.

    Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)
    E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
    Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
    E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.

    Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
    E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
    Sigo o fumo como uma rota própria,
    E gozo, num momento sensitivo e competente,
    A libertação de todas as especulações
    E a consciência de que a metafísica é uma conseqüência de estar mal disposto.

    Depois deito-me para trás na cadeira
    E continuo fumando.
    Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.

    (Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
    Talvez fosse feliz.)
    Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
    O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças).
    Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
    (O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
    Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
    Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
    Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.

    ( Álvaro de Campos, heterônimo de Fernando Pessoa )

    https://youtube.com/watch?v=sBe2FOwDifI%3Ffeature%3Doembed

    *

    *

    Estou cansado da inteligência.
    Pensar faz mal às emoções.
    Uma grande reacção aparece.
    Chora-se de repente, e todas as tias mortas fazem chá de novo
    Na casa antiga da quinta velha.
    Pára, meu coração!
    Sossega, minha esperança factícia!
    Quem me dera nunca ter sido senão o menino que fui…
    Meu sono bom porque tinha simplesmente sono e não ideias que esquecer!
    Meu horizonte de quintal e praia!
    Meu fim antes do princípio!

    Estou cansado da inteligência.
    Se ao menos com ela se percebesse qualquer cousa!
    Mas só percebo um cansaço no fundo, como pairam em taças
    Aquelas [] que o vinho tem e amodorram o vinho.

    ( Álvaro de Campos – 18-6-1930 ) heterônimo de Fernando Pessoa
    (Digitado e conferido por mim mesmo e por Rebeca dos Anjos em 3 de novembro de 2012, publicado no livro Poemas de Álvaro de Campos – Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. p. 178)

    *

    XLVIII

    Da mais alta janela da minha casa
    Com um lenço branco digo adeus
    Aos meus versos que partem para a humanidade.

    E não estou alegre nem triste.
    Esse é o destino dos versos.
    Escrevi-os e devo mostrá-los a todos
    Porque não posso fazer o contrário
    Como a flor não pode esconder a cor,
    Nem o rio esconder que corre,
    Nem a árvore esconder que dá fruto.

    Ei-los que vão já longe como que na diligência
    E eu sem querer sinto pena
    Como uma dor no corpo.

    Quem sabe quem os lerá?
    Quem sabe a que mãos irão?

    Flor, colheu-me o meu destino para os olhos.
    Árvores, arrancaram-me os frutos para as bocas.
    Rio, o destino da minha água era não ficar em mim.
    Submeto-me e sinto-me quase alegre,
    Quase alegre como quem se cansa de estar triste.

    Ide, ide de mim!
    Passa a árvore e fica dispersa pela Natureza.
    Murcha a flor e o seu pó dura sempre.
    Corre o rio e entra no mar e a sua água é sempre a que foi sua.

    Passo e fico, como o Universo.

    ( Alberto Caeiro ) heterônimo de Fernando Pessoa

    *

    Liberdade

    Ai que prazer
    Não cumprir um dever,
    Ter um livro pra ler
    E não o fazer!
    Ler é maçada,
    Estudar é nada.
    O sol doira
    Sem literatura.

    O rio corre, bem ou mal,
    Sem edição original.
    E a brisa, essa,
    De tão naturalmente matinal,
    Como tem tempo não tem pressa…

    Livros são papéis pintados com tinta.
    Estudar é uma coisa em que está indistinta
    A distinção entre nada e coisa nenhuma.

    Quanto é melhor, quando há bruma,
    Esperar por D. Sebastião,
    Quer venha quer não!

    Grande é a poesia, a bondade e as danças…
    Mas o melhor do mundo são as crianças,
    Flores, música, o luar e o sol, que peca
    Só quando, em vez de criar, seca.

    O mais do que isto
    É Jesus Cristo,
    Que não sabia nada de finanças
    Nem consta que tivesse biblioteca.

    Fernando Pessoa )

    *

    Ah, quanta vez, na hora suave
    Em que me esqueço,
    Vejo passar um vôo de ave
    E me entristeço!

    Por que é ligeiro, leve, certo
    No ar de amavio?
    Por que vai sob o céu aberto
    Sem um desvio?

    Por que ter asas simboliza
    A liberdade
    Que a vida nega e a alma precisa?
    Sei que me invade

    Um horror de me ter que cobre
    Como uma cheia
    Meu coração, e entorna sobre
    Minh’alma alheia

    Um desejo, não de ser ave,
    Mas de poder
    Ter não sei quê do vôo suave
    Dentro em meu ser.

    Fernando Pessoa )

    *

    O Universo não é uma Idéia Minha…

    O universo não é uma idéia minha.
    A minha idéia do Universo é que é uma idéia minha.
    A noite não anoitece pelos meus olhos,
    A minha idéia da noite é que anoitece por meus olhos.
    Fora de eu pensar e de haver quaisquer pensamentos
    A noite anoitece concretamente
    E o fulgor das estrelas existe como se tivesse peso.

    Fernando Pessoa )

    *

    Meus versos são meu sonho dado

    Fernando Pessoa )

    *

    Todas as cartas de amor são
    Ridículas.
    Não seriam cartas de amor
    Se não fossem
    Ridículas.
    Também escrevi em meu
    Tempo cartas de amor,
    Como as outras,
    Ridículas.
    As cartas de amor,
    Se há amor,
    Têm de ser
    Ridículas.
    Mas, afinal,
    Só as criaturas que nunca
    Escreveram
    Cartas de amor
    É que são
    Ridículas…

    ( Álvaro de Campos ) heterônimo de Fernando Pessoa

    *

    Há doenças piores que as doenças,
    Há dores que não doem, nem na alma
    Mas que são dolorosas mais que as outras.
    Há angústias sonhadas mais reais
    Que as que a vida nos traz, há sensações
    Sentidas só com imaginá-las
    Que são mais nossas do que a própria vida.
    Há tanta cousa que, sem existir,
    Existe, existe demoradamente,
    E demoradamente é nossa e nós…
    Por sobre o verde turvo do amplo rio
    Os circunflexos brancos das gaivotas…
    Por sobre a alma o adejar inútil
    Do que não foi, nem pôde ser, e é tudo.

    Dá-me mais vinho, porque a vida é nada.

    Fernando Pessoa )

    *

    Adiamento

    Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã…
    Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã,
    E assim será possível; mas hoje não…
    Não, hoje nada; hoje não posso.
    A persistência confusa da minha subjetividade objetiva,
    O sono da minha vida real, intercalado,
    O cansaço antecipado e infinito,
    Um cansaço de mundos para apanhar um elétrico…
    Esta espécie de alma…
    Só depois de amanhã…
    Hoje quero preparar-me,
    Quero preparar-me para pensar amanhã no dia seguinte…
    Ele é que é decisivo.
    Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos…
    Amanhã é o dia dos planos.
    Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o mundo;
    Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã…
    Tenho vontade de chorar,
    Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro…
    Não, não queiram saber mais nada, é segredo, não digo.
    Só depois de amanhã…
    Quando era criança o circo de Domingo divertia-se toda a semana.
    Hoje só me diverte o circo de Domingo de toda a semana da minha infância…
    Depois de amanhã serei outro,
    A minha vida triunfar-se-á,
    Todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido e prático
    Serão convocadas por um edital…
    Mas por um edital de amanhã…
    Hoje quero dormir, redigirei amanhã…
    Por hoje, qual é o espetáculo que me repetiria a infância?
    Mesmo para eu comprar os bilhetes amanhã,
    Que depois de amanhã é o que está bem o espetáculo…
    Antes, não…
    Depois de amanhã terei a pose pública que amanhã estudarei.
    Depois de amanha serei finalmente o que hoje não posso nunca
    Só depois de amanhã…
    Tenho sono como o frio de um cão vadio.
    Tenho muito sono.
    Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã…
    Sim, talvez só depois de amanhã..
    O porvir…
    Sim, o porvir..

    Fernando Pessoa )

    *

    No ciclo eterno das mudáveis coisas

    No ciclo eterno das mudáveis coisas
    Novo inverno após novo outono volve
    À diferente terra
    Com a mesma maneira.
    Porém a mim nem me acha diferente
    Nem diferente deixa-me, fechado
    Na clausura maligna
    Da índole indecisa.
    Presa da pálida fatalidade
    De não mudar-me, me fiel renovo
    Aos propósitos mudos
    Morituros e infindos.

    ( Ricardo Reis ) heterônimo de Fernando Pessoa

    *

    Viajar? Para viajar basta existir. Vou de dia para dia, como de estação para estação, no comboio do meu corpo, ou do meu destino, debruçado sobre as ruas e as praças, sobre os gestos e os rostos, sempre iguais e sempre diferentes, como, afinal, as
    paisagens são.

    Se imagino, vejo. Que mais faço eu se viajo? Só a fraqueza extrema da imaginação justifica que se tenha que deslocar para sentir.

    “Qualquer estrada, esta mesma estrada de Entepfuhl, te levará até ao fim do mundo”. Mas o fim do mundo, desde que o mundo se consumou dando-lhe a volta, é o mesmo Entepfuhl de onde se partiu. Na realidade, o fim do mundo, como o principio, é o nosso conceito do mundo. É em nós que as paisagens tem paisagem. Por isso, se as imagino, as crio; se as crio, são; se são, vejo-as como ás outras. Para que viajar? Em Madrid, em Berlim, na Pérsia, na China, nos Pólos ambos, onde estaria eu senão em mim mesmo, e no tipo e gênero das minhas sensações?

    A vida é o que fazemos dela. As viagens são os viajantes. O que vemos, não é o que vemos, senão o que somos.

    Fernando Pessoa )

    *

    Mestre

    Mestre, meu mestre querido!
    Coração do meu corpo intelectual e inteiro!
    Vida da origem da minha inspiração!
    Mestre, que é feito de ti nesta forma de vida?
    Não cuidaste se morrerias, se viverias, nem de ti nem de nada,
    Alma abstrata e visual até aos ossos,
    Atenção maravilhosa ao mundo exterior sempre múltiplo,
    Refúgio das saudades de todos os deuses antigos,
    Espírito humano da terra materna,
    Flor acima do dilúvio da inteligência subjetiva…

    Mestre, meu mestre!
    Na angústia sensacionista de todos os dias sentidos,
    Na mágoa quotidiana das matemáticas de ser,
    Eu, escravo de tudo como um pó de todos os ventos,
    Ergo as mãos para ti, que estás longe, tão longe de mim!

    Meu mestre e meu guia!
    A quem nenhuma coisa feriu, nem doeu, nem perturbou,
    Seguro como um sol fazendo o seu dia involuntariamente,
    Natural como um dia mostrando tudo,
    Meu mestre, meu coração não aprendeu a tua serenidade.
    Meu coração não aprendeu nada.
    Meu coração não é nada,
    Meu coração está perdido.
    Mestre, só seria como tu se tivesse sido tu.
    Que triste a grande hora alegre em que primeiro te ouvi!
    Depois tudo é cansaço neste mundo subjetivado,
    Tudo é esforço neste mundo onde se querem coisas,
    Tudo é mentira neste mundo onde se pensam coisas,
    Tudo é outra coisa neste mundo onde tudo se sente.
    Depois, tenho sido como um mendigo deixado ao relento
    Pela indiferença de toda a vila.
    Depois, tenho sido como as ervas arrancadas,
    Deixadas aos molhos em alinhamentos sem sentido.
    Depois, tenho sido eu, sim eu, por minha desgraça,
    E eu, por minha desgraça, não sou eu nem outro nem ninguém.
    Depois, mas por que é que ensinaste a clareza da vista,
    Se não me podias ensinar a ter a alma com que a ver clara?
    Por que é que me chamaste para o alto dos montes
    Se eu, criança das cidades do vale, não sabia respirar?
    Por que é que me deste a tua alma se eu não sabia que fazer dela
    Como quem está carregado de ouro num deserto,
    Ou canta com voz divina entre ruínas?
    Por que é que me acordaste para a sensação e a nova alma,
    Se eu não saberei sentir, se a minha alma é de sempre a minha?

    Prouvera ao Deus ignoto que eu ficasse sempre aquele
    Poeta decadente, estupidamente pretensioso,
    Que poderia ao menos vir a agradar,
    E não surgisse em mim a pavorosa ciência de ver.
    Para que me tornaste eu? Deixasses-me ser humano!

    Feliz o homem marçano
    Que tem a sua tarefa quotidiana normal, tão leve ainda que pesada,
    Que tem a sua vida usual,
    Para quem o prazer é prazer e o recreio é recreio,
    Que dorme sono,
    Que come comida,
    Que bebe bebida, e por isso tem alegria.

    A calma que tinhas, deste-ma, e foi-me inquietação.
    Libertaste-me, mas o destino humano é ser escravo.
    Acordaste-me, mas o sentido de ser humano é dormir.

    ( Álvaro de Campos ) heterônimo de Fernando Pessoa

    *

    Cancioneiro

    Dá a surpresa de ser.
    É alta, de um louro escuro.
    Faz bem só pensar em ver
    Seu corpo meio maduro.

    Seus seios altos parecem
    (Se ela estivesse deitada)
    Dois montinhos que amanhecem
    Sem ter que haver madrugada.

    E a mão do seu braço branco
    Assenta em palmo espalhado
    Sobre a saliência do flanco
    Do seu relêvo tapado.

    Apetece como um barco.
    Tem qualquer coisa de gomo.
    Meu Deus, quando é que eu embarco?
    Ó fome, quando é que eu como?

    Fernando Pessoa )

    *

    Na Véspera

    Na véspera de nada ninguém me visitou.
    Olhei atento a estrada durante todo o dia
    Mas ninguém vinha ou via, ninguém aqui chegou.

    Mas talvez não chegar
    Queira dizer que há
    Outra estrada que achar,
    Certa estrada que está,
    Como quando da festa
    Se esquece quem lá está.

    Fernando Pessoa )

    *

    Não sei quantas almas tenho

    Não sei quantas almas tenho.
    Cada momento mudei.
    Continuamente me estranho.
    Nunca me vi nem acabei.
    De tanto ser, só tenho alma.
    Quem tem alma não tem calma.
    Quem vê é só o que vê,
    Quem sente não é quem é,

    Atento ao que sou e vejo,
    Torno-me eles e não eu.
    Cada meu sonho ou desejo
    É do que nasce e não meu.
    Sou minha própria paisagem;
    Assisto à minha passagem,
    Diverso, móbil e só,
    Não sei sentir-me onde estou.

    Por isso, alheio, vou lendo
    Como páginas, meu ser.
    O que segue não prevendo,
    O que passou a esquecer.
    Noto à margem do que li
    O que julguei que senti.
    Releio e digo: “Fui eu?”
    Deus sabe, porque o escreveu.

    Fernando Pessoa )

  • Uncategorized

    Amigos Tricolores, bom dia!! Vale a pena ler

    Melhor seria não escrever. Será pouco. Faltará algo que restou tatuado no coração. É difícil traduzir em palavras o sentimento que explodiu no peito.

    Estou exausto. Em êxtase. Tentei dormir. Meus olhos não pregam. Não descansam do sonho. Quem liga?

    Houve um baile. Música. Éramos cinquenta mil espectadores. Ao vivo. Ouvidos e olhos atentos. Milhões também na telinha da tv. Um, dois, três a zero. Um show!! Adversário atordoado, na roda, nas cordas, mortalmente ferido.

    A bola gira. Não para. O Flu joga lindo. Limpo. Meu sorriso não tem fim. Me alimento da energia que vem da arquibancada. E canto. Sinto encanto. Sinto e canto, enquanto me deslumbro com o renascimento do futebol. Ouço Diniz!! Diniz!! E a bola roda, tipo “bobinho”, de pé em pé.

    Reverenciar o insano e perturbado técnico é uma prazeirosa obrigação. Nada lhe parece bom, a não ser a perfeição. Corajoso, talentoso e convicto, reeditou o futebol técnico. O verdadeiro futebol. Do passe, da posse. Do espetáculo. Foda-se o futebol de resultado. Diniz quer os olhos do torcedor brilhando de felicidade. Assim estão os meus até agora.

    São três e meia da manhã. Continuo ligadão.

    Recordo-me do exato momento em que o treinador desfez a lordose. Apontou para o banco e mandou chamá-lo. Meu coração pulou. Frisson. Com os pés fora do chão. Fred jogou o colete longe e veio em direção ao Diniz. Milhões de vozes ecoaram pelo mundo: “O FRED VAI TE PEGAR”.

    Assim se vive: acertando e errando. Caindo. Levantando. Aprendendo. Tomando porrada, mas não desistindo. Crescendo. Evoluindo. Superando os desafios que a vida impõe.

    Fred ouve os derradeiros conselhos. Nós, do alto da arquibancada, não queríamos mais nada. Apenas vê-lo ali. Jogar. Jogar junto. E recordar o tanto que esse cara nos deu alegrias. Sinto as lágrimas brotando em profusão. Incontroláveis. Há um mundo que chora de felicidade. E a vida, Fred, quando já não se tem a visão perfeita? Ela é maravilha ou é sofrimento? Ela é alegria ou lamento? O que é? O que é, meu irmão? Há quem fale que é um divino mistério profundo. Sopro do criador. Atitude repleta de amor.

    Os deuses do futebol levantaram a placa. O roteiro estava criado. Ninguém podia imaginar. Pra lá de surpreendente. Fred entra em campo. O espetáculo há de ser completo. Hollywoodiano.

    Exatos quarenta e seis minutos do segundo tempo. Martinelli invade a área corintiana. Levanta a cabeça e vê o movimento dos atacantes. Procura especificamente por Fred e rola a bola pra trás.

    Frederico Chaves Guedes. Mineiro, dos chopps, dos caipsaquês, dos carros de luxo, das areias de Ipanema, depois das do Leblon, das mulheres, dos beijos pela janela do carro, da transformação, do temente a Deus, do evangélico, do conselheiro dos meninos, do amigo, do marido, do pai, do homem que formou um linda família. Do artilheiro e seu amor incondicional pelo Flu.

    A história precisava ser justa e completa. Fazer justiça. Dar a Fred o que é de Fred. Ele chapa a bola e faz o quarto gol. Inesquecível. Histórico. História. O Maracanã desaba de emoção. Um gol pra eternidade. Fred eterno. No Olimpo. Os deuses o saúdam. O mundo tricolor delira.

    Fred corre, sorri, ri e chora. Não se contém. Parece não acreditar. A torcida tricolor sorri, alucina, ri e chora. Parece não acreditar que são os últimos momentos de uma magistral e inesquecível história. De uma carreira brilhante. A ficha começa a cair.

    Eu vi um menino correndo. Eu vi o tempo brincando ao redor do caminho daquele menino.

    O ídolo vibra e reverencia uma gente que sempre lhe deu a mão. Colo. Embalou-o nos momentos mais dramáticos, por absoluto merecimento. Alvaro Chaves, 41, Bairro das Laranjeiras, satisfeito, sorri. Estranho seria se eu não me apaixonasse por você.

    Fred. Ídolo. O maior deste século. Status de supra-humano. Um símbolo da imensa legião de fãs. Somos crianças e adultos, diante da imensidão deste super-herói. Quando ele armou e deu “aquela chapa” na bola, fez-se silêncio e luz. Estopa. Gol. Nossos corações explodiram. Naquele instante, vivemos os nossos melhores sonhos.

    Durante uma vida, o Fluminense e o Fred nos empurraram pra Terra do Nunca. E nela nos estabelecemos, fixamos moradia, vivendo fantasias, alucinações, sonhos, delírios, cultuamos ídolos, mártires, super-heróis. Nos imaginamos com asas – ou capas – voando para um mundo mágico qualquer, de felicidade plena, por vezes muito longe daqui.

    E na bruma leve das paixões que vêm de dentro, vos digo que até o próximo sábado não descerei deste mundo lúdico, dos devaneios, dos sonhos. Continuarei sorrindo, correndo, brincando de bola. Feito criança. Não quero – e nem vou – despertar para o fim que se avizinha. Tenho duas centenas de gols ecoando pela eternidade, para recordar. Porque gols são pra vida toda. Assim como o Fred.

    Eterno.

    Saudações Tricolores!!!!
    🇭🇺🇭🇺🇭🇺🇭🇺🇭🇺🇭🇺🇭🇺🇭🇺

    Heraldo Iunes

  • Uncategorized

    Governos apresentam soluções para combater o lixo no mar

    Na Conferência dos Oceanos, representantes do Canadá, Reino Unido e Portugal apresentaram ações práticas para o fim do plástico e outros resíduos nos mares, além de convidar iniciativas privadas para contribuírem

     (Leandro Fonseca/Exame)

    (Leandro Fonseca/Exame)

    https://audio4.audima.co/iframe-later-thin-audima.html?skin=thin&statistic=true&clientAlias=&background=undefined&color=undefined&type=undefined

    Por Marina FilippePublicado em 29/06/2022 09:16 | Última atualização em 29/06/2022 09:16Tempo de Leitura: 2 min de leitura

    *De Lisboa, Portugal.

    As parcerias público-privadas para soluções contra poluição marinha foi tema de um debate na Conferência dos Oceanos, em Lisboa, na manhã desta quarta-feira, 29. Na ocasião, representantes de governos apresentaram soluções já em andamento, além de propor parcerias.

    https://b0f6b2d2034798edf63e556320a109e3.safeframe.googlesyndication.com/safeframe/1-0-38/html/container.html

    Receba gratuitamente a newsletter da EXAME sobre ESG. Inscreva-se aqui

    O Ministro do Pacífico e do Meio Ambiente Internacional no Reino Unido, Lord Goldsmith, reforçou a importância do cumprimento do acordo internacional pelo fim da poluição plástica, que se baseia em três propostas iniciais de várias nações e estabelece um Comitê Intergovernamental de Negociação, com funcionamento a partir deste ano.

    A meta é concretizar uma proposta para um acordo global até o fim de 2024. “Não podemos falhar, esse é o momento de agir e temos muito a fazer”, disse o ministro.

    Já Duarte Cordeiro, Ministro do Ambiente da Ação Climática de Portugal, reforçou o dano que a poluição causa. “Precisamos de soluções inovadora e financeiramente viáveis. A economia circular do plástico é um caminho”, afirmou. Em entrevista exclusiva para a EXAME, Duarte lembrou que Portugal é o país que mais limpou praias em 2021.

    Das 260 iniciativas do ano passado, 175 aconteceram em praias portuguesas, isto é mais de 67%. “Temos um trabalho intenso em praias e ribeiras para evitar que o lixo chegue aos oceanos, e acreditamos na economia circular como chave para o avanço”, disse Duarte.

    Outro exemplo de ação prática que já acontece no combate do lixo no mar é do Canadá. Na Conferência, Lawrence Hanson, do Ministério da Pesca e Oceanos, afirmou que mais US$ 10 milhões em financiamento para o fundo Ghost Gear foram liberados em 2021-2022.

    A iniciativa promove o tratamento de equipamentos de pesca abandonados, perdidos ou descartados. Até agora, o Programa Ghost Gear recuperou um total de 224 toneladas de artes de pesca e detritos marinhos.

    “Estamos fazendo um bom progresso, mas também comprometidos a continuar e cooperar com organizações ao redor do mundo”, disse Hanson.

    Leia também:

    Maya Gabeira: há aumento do plástico nos mares e precisamos agir

    Agenda econômica domina Conferência dos Oceanos e ONU justifica: é preciso pressionar os governos

    CanadáConferência dos Oceanos 2022OceanosPescaPortugalReino Unido

    Mais lidas

    1

    TECNOLOGIAHá um dia • 1 min de leitura

    Novo iPhone será mais caro: preços vazados indicam aumento por conta de componentes

    2

    CARREIRAHá 2 dias • 3 min de leitura

    “Jornada de 40 horas é algo ultrapassado”, diz CEO de empresa que adotou semana de 4 dias

    3

    POPHá 3 dias • 5 min de leitura

    Kim Kardashian tem jatinho de R$ 750 milhões, mais caro que o de Bezos e Musk; veja fotos

    4

    NEGÓCIOSHá 4 dias • 2 min de leitura

    CEO de empresa de US$ 68 bilhões pede demissão: “Vou sentar na praia e não fazer nada”

    5

    MUNDOHá 20 horas • 3 min de leitura

    Brasileiros são bem-vindos em Portugal, diz presidente português

    Veja Também

    ESG

    Há um dia • 5 min de leitura

    Conferência dos Oceanos termina com 700 compromissos

    ESG

    Há 2 dias • 3 min de leitura

    Os oceanos devem ser vistos como um ativo, diz ministro de Portugal

    ESG

    Há 2 dias • 2 min de leitura

    Pescadores em SP ganham até R$ 600 pela coleta de lixo no mar

    ESG

    Há 2 dias • 3 min de leitura

    Sob a sombra da guerra na Ucrânia, governos buscam acordo para salvar os oceanos

    ESG

    Há 2 dias • 5 min de leitura

    1/3 do plástico produzido no Brasil pode chegar aos oceanos, mostra estudo

    ESG

    Há 3 dias • 4 min de leitura

    Como ser sustentável? “Basta começar”, diz chefe de ESG da Ikea

    ESG

    Há 3 dias • 3 min de leitura

    Moraes, do STF: Há leis, mas proteger o meio ambiente não é prioridade

    • Siga-nos: